domingo, 31 de outubro de 2010 
		 
		  
		 
Cântico Negro
			
			   
 "Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces 
 Estendendo-me os braços, e seguros 
 De que seria bom que eu os ouvisse 
 Quando me dizem: "vem por aqui!" 
 Eu olho-os com olhos lassos, 
 (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) 
 E cruzo os braços, 
 E nunca vou por ali... 
 
 A minha glória é esta: 
 Criar desumanidade! 
 Não acompanhar ninguém. 
 - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade 
 Com que rasguei o ventre a minha mãe 
 
 Não, não vou por aí! Só vou por onde 
 Me levam meus próprios passos... 
 
 Se ao que busco saber nenhum de vós responde 
 Por que me repetis: "vem por aqui!"? 
 
 Prefiro escorregar nos becos lamacentos, 
 Redemoinhar aos ventos, 
 Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, 
 A ir por aí... 
 
 Se vim ao mundo, foi 
 Só para desflorar florestas virgens, 
 E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! 
 O mais que faço não vale nada. 
 
 Como, pois sereis vós 
 Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem 
 Para eu derrubar os meus obstáculos?... 
 Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, 
 E vós amais o que é fácil! 
 Eu amo o Longe e a Miragem, 
 Amo os abismos, as torrentes, os desertos... 
 
 Ide! Tendes estradas, 
 Tendes jardins, tendes canteiros, 
 Tendes pátria, tendes tectos, 
 E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... 
 Eu tenho a minha Loucura ! 
 Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, 
 E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... 
 
 Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. 
 Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; 
 Mas eu, que nunca principio nem acabo, 
 Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. 
 
 Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! 
 Ninguém me peça definições! 
 Ninguém me diga: "vem por aqui"! 
 A minha vida é um vendaval que se soltou. 
 É uma onda que se alevantou. 
 É um átomo a mais que se animou... 
 Não sei por onde vou, 
 Não sei para onde vou 
 - Sei que não vou por aí! 
 
 José Régio 
  
  
  João Villaret 
 
 
 
 
  
		
 
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31.10.10 
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terça-feira, 21 de setembro de 2010 
		 
		  
		 
Cacilheiro
			
			   
 Lá vai no Mar da Palha o Cacilheiro,
 comboio de Lisboa sobre a água:
 Cacilhas e Seixal, Montijo mais Barreiro.
 Pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa.
  
 Na Ponte passam carros e turistas
 iguais a todos que há no mundo inteiro,
 mas, embora mais caras, a Ponte não tem vistas
 como as dos peitoris do Cacilheiro.
  
 Leva namorados, marujos,
 soldados e trabalhadores,
 e parte dum cais
 que cheira a jornais,
 morangos e flores.
 Regressa contente,
 levou muita gente
 e nunca se cansa.
 Parece um barquinho
 lançado no Tejo
 por uma criança.
  
 Num carreirinho aberto pela espuma,
 la vai o Cacilheiro, Tejo à solta,
 e as ruas de Lisboa, sem ter pressa nenhuma,
 tiraram um bilhete de ida e volta.
  
 Alfama, Madragoa, Bairro Alto,
 tu cá-tu lá num barco de brincar.
 Metade de Lisboa à espera do asfalto,
 e já meia saudade a navegar.
  
 Leva namorados, marujos,
 soldados e trabalhadores,
 e parte dum cais
 que cheira a jornais,
 morangos e flores.
 Regressa contente,
 levou muita gente
 e nunca se cansa.
 Parece um barquinho
 lançado no Tejo
 por uma criança.
  
 Se um dia o Cacilheiro for embora,
 fica mais triste o coração da água,
 e o povo de Lisboa dirá, como quem chora,
 pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa
 
 Poema de Ary dos Santos
 Na voz de Na voz de Carlos do Carmo
 
 
 
 
 
  
		
 
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21.9.10 
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domingo, 8 de novembro de 2009 
		 
		  
		 
Receita para fazer um herói
			
			   
 Tome-se um homem,
 Feito de nada, como nós,
 E em tamanho natural.
 Embeba-se-lhe a carne,
 Lentamente,
 Duma certeza aguda, irracional,
 Intensa como o ódio ou como a fome.
 Depois, perto do fim,
 Agite-se um pendão
 E toque-se um clarim.
 
 Serve-se morto.
 
 Poema de Reinaldo Ferreira
 Na voz de Mário Viegas
 
  
    
 
 
 
  
		
 
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8.11.09 
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sexta-feira, 17 de julho de 2009 
		 
		  
		 
Eu Sou Português Aqui
			
			   
   
  
 Eu sou português
 aqui
 em terra e fome talhado
 feito de barro e carvão
 rasgado pelo vento norte
 amante certo da morte
 no silêncio da agressão.
 
 Eu sou português
 aqui
 mas nascido deste lado
 do lado de cá da vida
 do lado do sofrimento
 da miséria repetida
 do pé descalço
 do vento.
 
 Nasci
 deste lado da cidade
 nesta margem
 no meio da tempestade
 durante o reino do medo.
 Sempre a apostar na viagem
 quando os frutos amargavam
 e o luar sabia a azedo.
 
 Eu sou português
 aqui
 no teatro mentiroso
 mas afinal verdadeiro
 na finta fácil
 no gozo
 no sorriso doloroso
 no gingar dum marinheiro.
 
 Nasci
 deste lado da ternura
 do coração esfarrapado
 eu sou filho da aventura
 da anedota
 do acaso
 campeão do improviso,
 trago as mão sujas do sangue
 que empapa a terra que piso.
  
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 Eu sou português
 aqui
 na brilhantina em que embrulho,
 do alto da minha esquina
 a conversa e a borrasca
 eu sou filho do sarilho
 do gesto desmesurado
 nos cordéis do desenrasca.
 
 Nasci
 aqui
 no mês de Abril
 quando esqueci toda a saudade
 e comecei a inventar
 em cada gesto
 a liberdade.
 
 Nasci
 aqui
 ao pé do mar
 duma garganta magoada no cantar.
 Eu sou a festa
 inacabada
 quase ausente
 eu sou a briga
 a luta antiga
 renovada
 ainda urgente.
 
 Eu sou português
 aqui
 o português sem mestre
 mas com jeito.
 Eu sou português
 aqui
 e trago o mês de Abril
 a voar
 dentro do peito. 
 
 
 
 
 
 
 
 
  
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Poema de José Fanha na voz de José Fanha
  
 
		
 Colocado por delta  
17.7.09 
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domingo, 17 de agosto de 2008 
		 
		  
		 
Prelúdio
			
			
 
  
  
		 
			  
quarta-feira, 28 de maio de 2008 
		 
		  
		 
Quem sou eu?
			
			   
A melhor maneira que Pessoa achou para exorcizar o seu medo de morrer foi vivê-lo intensamente na pessoa de Álvaro dos Campos.
 O papel de Campos é purgar Pessoa das suas mais profundas angústias e viver, em seu lugar, essa vida para a qual Pessoa se dizia "incompetente".
 Alberto Caeiro, por seu lado, foi criado para pregar que "isto de viver e morrer são classificações como as das plantas", dando-se como exemplo.
 
 "Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
 Fechei os olhos e dormi"
 
 Já Ricardo Reis, apesar de ter sido inventado para que Pessoa com ele aprendesse a arte de viver em sofrimento e morrer sem pânico, não consegue furtar-se ao terror da aproximação do "comboio definitivo":
 
 A vida mais vil antes que a morte
 Que desconheço, quero!"
 
 Este é o "drama em gente" que Pessoa foi compondo ao longo da vida. Se não dermos aos seus poemas esse alcance dramático que ele reivindicava, falharemos o mais profundo entendimento da sua obra.
 
 
  
		
 
 Colocado por delta  
28.5.08 
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quarta-feira, 9 de abril de 2008 
		 
		  
		 
Cavalo à solta
			
			  
 
 Minha laranja amarga e doce
 meu poema
 feito de gomos de saudade
 minha pena
 pesada e leve
 secreta e pura
 minha passagem para o breve breve
 instante da loucura.
 
 Minha ousadia
 meu galope
 minha rédea
 meu potro doido
 minha chama
 minha réstia
 de luz intensa
 de voz aberta
 minha denúncia do que pensa
 do que sente a gente certa.
 
 Em ti respiro
 em ti eu provo
 por ti consigo
 esta força que de novo
 em ti persigo
 em ti percorro
 cavalo à solta
 pela margem do teu corpo.
 
 Minha alegria
 minha amargura
 minha coragem de correr contra a ternura.
 
 Por isso digo
 canção castigo
 amêndoa travo corpo alma amante amigo
 por isso canto
 por isso digo
 alpendre casa cama arca do meu trigo.
 
 Meu desafio
 minha aventura
 minha coragem de correr contra a ternura.
 
 Ary dos Santos (24/09/01) 
 
 Na voz de Fernando Tordo
 Etiquetas: Fernando, Tordo 
  
		
 
 Colocado por delta  
9.4.08 
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